Talvez desde logo deva ser dito que a música ouvida é trabalho de edição de prolongadas sessões de improvisação, numa envolvência tanto psicadélica e instintiva como conceptual e trabalhada. Com Czukay e Schmidt como ex-pupilos de Stockhausen, Liebezit vindo do jazz e Damo Suzuki como fruto de uma cultura japonesa emergente e da vivência de artista de rua, os Can continuam o projecto deixado em Sountracks, quando Damo substitui a voz de Malcolm Mooney e inicia uma nova etapa da banda germânica.
"Nada em Tago Mago tinha sido ouvido antes - diz Julian Cope - Tago Mago soa a ele
próprio e a nada mais."
Com a primeira batida de Jaki Liebezeit em Paperhouse o ouvinte é desde logo absorvido pela interdimensionalidade transcendental da música de Tago Mago, numa explosão instrumental marcada pelos delírios vocais de Damo Suzuki. Um álbum que é acima de tudo uma experiência artística, conceptual, que durante mais de 70 minutos navega por explorações de formatos mais clássicos do rock a meandros da mais erudita vertente da música contemporânea.
Por um lado, o inicial de Paperhouse ou Oh Yeah, mantêm-se sonoridades relativamente familiares, num registo radicalmente diferente ao que era feito até então, conjugando genialmente esta familiaridade no formato com a abertura de novos espaços texturais dentro da música, a exploração de cada sonoridade, a improvisação, e todo este movimento kraut que germinava na Alemanha. É Halleluwah que, com 18 minutos, fecha um primeiro disco sempre marcado pela mântrica bateria de Liebezeit, imparável, fio condutor do trabalhado devaneio que cada um dos cinco membros constrói e exterioriza, bem como da cuidada exploração de Czukay aos comandos da produção.
Por outro, e embora sempre integrado numa continuação lógica, Augmn abre o segundo disco como se de uma inversão de Halleluwah se tratasse, lembrando o "Om" dos transas orientais mergulha numa densidade sonora que acaba por estender-se ao restante álbum. Augmn lembra mesmo uma viagem pelos labirintos do interior da mente, desafiando os limites do som e dos próprios instrumentos, desdobrando o tempo e jogando com ritmos e repetições, tocando os domínios do avant-garde à medida que se transforma em Peking O. Dos tempestuosos últimos minutos deste, ressurge por fim o tom quase baladesco de Bring Me Coffee or Tea, que confortavelmente restabelece a mente ao corpo, relembrando a ritmada progressão inicial, e delineando os traços que, em Ege Bamyasi, definiriam o corpo musical dos Can.
Numa re-edição cuja remasterização só traz benefícios, a Spoon Records junta ainda três gravações ao vivo de Mushroom, Spoon (de Ege Bamyasi) e Halleluwah, evidência da improvisação e da sua enorme capacidade como banda, em viagens musicais de quase 30 minutos sobre um mesmo tema, contribuindo apenas para a consolidação do seu alto estatuto.
40 anos depois, a audição de Tago Mago desperta ainda o sentimento sentido por Julian Cope. Um álbum cuja influência é obrigatória presença em grande parte dos grandes nomes da música desde então. Uma influência trazida não tanto pela sonoridade em concreto, mas pelo modo como, em 1971, os Can olharam, sentiram e trabalharam a música.
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